
A infra de nuvem é nossa. Foto: Depositphotos.
O Serpro, maior estatal federal de tecnologia, parece ter feito uma virada na sua estratégia dos últimos anos, deixando para trás os acordos fechados com gigantes de nuvem como AWS e Microsoft e voltando a centralizar a sua oferta para o governo nos próprios data centers.
Pelo menos, é o que se desprende de um comunicado da estatal divulgando a “Nuvem de Governo”, uma solução, que, de acordo com o Serpro, transforma o Brasil “na única nação com nuvem 100% soberana no hemisfério Sul”.
“Os dados estarão em ambiente 100% controlado pelo Serpro, no ambiente de São Paulo e de Brasília”, afirma o diretor-presidente do Serpro, Alexandre Amorim.
A nota divulgada pelo Serpro adiciona ainda que os dados serão mantidos “integralmente dentro das fronteiras do país”, nos data centers da estatal, o que elimina “riscos associados à transferência internacional de dados” e assegura “total conformidade com as regulamentações nacionais”.
O texto do Serpro não menciona diretamente os grandes players de nuvem como AWS e Microsoft, mas ele é, na prática, uma despedida de empresas que desde 2018 vem ganhando espaço no governo, inclusive por meio de parcerias com o próprio Serpro.
A partir de 2019, o Serpro começou a fechar acordos em série com as gigantes de nuvem, nos quais se posicionava como uma intermediária na venda de nuvem para órgãos de governo.
A AWS foi a primeira a entrar, com um contrato de R$ 71,2 milhões ainda em 2019. Depois vieram Huawei (R$ 23 milhões), Microsoft (R$ 22,6 milhões), Oracle (R$ 41,5 milhões) e IBM (R$ 40,3 milhões).
As condições são sempre as mesmas: contratos de cinco anos, nos quais os valores fechados são apenas uma base, cuja concretização vai depender de quanto o Serpro vai efetivamente vender no final.
Não se sabe efetivamente quantos contratos foram fechados por essa modalidade. Ainda no apagar das luzes do governo Bolsonaro, veio a público que o Ministério da Saúde fechou um contrato de R$ 32 milhões com o Serpro atuando como “broker”.
As pistas de que uma mudança de rumo estava a caminho em Brasília vieram já no período de troca de governo, no final de 2022.
Foi quando César Alvarez, um dos integrantes da transição do governo Lula, disse que a adoção de nuvem no governo da maneira atual era uma “irresponsabilidade”, a ser corrigida com um movimento de “voltar para uma política de data centers”.
Na época, a reportagem do Baguete questionou a AWS, de longe a maior fornecedora de nuvem do governo, com contratos gigantes fechados nos últimos anos por intermédio do Ministério do Planejamento.
Paulo Cunha, gerente da AWS para o setor público no Brasil, frisou que a adoção de nuvens privadas seria uma "política de estado", consolidada em instruções normativas do Ministério da Economia.
Políticas de estado mudam, pelo visto. Em outubro de 2023, o Ministério da Gestão, publicou a portaria 5.950, trazendo o conceito de “nuvem de governo”, no qual é de central importância a localidade em que os dados estão hospedados.
“A proposta da nuvem de governo é garantir a proteção a dados críticos de governo por meio da hospedagem desses dados e sistemas em empresas públicas ou em instalações de órgãos públicas que estejam preparadas para garantia a disponibilidade e integridade desses recursos de TIC”, afirmou o secretário de Governo Digital do Ministério da Gestão, Rogério Mascarenhas.
Com a mudança de rumos no Serpro, o governo mexe em uma peça relevante no tabuleiro pelo lado da oferta. Outro movimento que deve vir é não promover mais grandes licitações de compras de nuvem, facilitando a adesão posterior de órgãos públicos, como vinha sendo feito nos últimos anos.
Também estão sendo feitas movimentações pelo lado da demanda. Recentemente, a Comissão de Coordenação do Sistema de istração dos Recursos de Tecnologia da Informação (quem preferir, pode usar a sigla CCSISP), controlada pelo Ministério da Gestão, recomendou aos seus integrantes o uso de dos serviços de Serpro e Dataprev de modo a garantir a “segurança dos dados” e, especialmente, que eles sejam armazenados em território brasileiro.
A CCSISP tem debaixo do seu guarda chuva 250 órgãos do poder executivo federal. Se os órgãos vão aderir e quão rápido, e qual é o destino das dezenas de contratos de nuvem já fechados, ainda está por ver.
Mas o governo funciona também por inércia, e um empurrão na direção da infraestrutura própria foi dado.
Agora é ver qual será a reação dos fornecedores privados. Players como a AWS e a Microsoft têm data centers no Brasil há pelo menos uma década, e garantem de pés juntos que podem garantir que os dados do governo ficam hospedados apenas no Brasil, o que no jargão é chamado de “soberania de dados”.
É uma questão espinhosa. A infraestrutura das grandes nuvens é um assunto complexo e parece difícil que algum cliente possa estar 100% seguro de onde estão seus dados o tempo todo.
No final das contas, é tudo um cálculo de custo e benefício. Contratando grandes players, o governo tem infra de ponta sem custos de propriedade para os serviços públicos, precisando no entanto confiar na palavra de multinacionais sobre a questão dos dados.
Com a infra própria, o governo ganha segurança total de onde estão os dados, junto com uma conta bilionária de construção de data centers.