
007 contra o Satânico Dr. No, o clássico de 1962.
A Assespro perdeu uma briga contra o Serpro que já durava quase 10 anos, com a decisão do Supremo Tribunal Federal de que a estatal federal de tecnologia pode sim atender clientes de governo sem licitação, quando o serviço for considerado “estratégico”.
A história é antiga. Em 2012, a Assespro entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade junto ao STF contra a Lei 12.249/2010, que retirou a necessidade de licitação para a contratação de serviços de TI do Serpro por alguns órgãos do governo federal.
O Serpro ficaria dispensado sempre que os Ministérios da Fazenda e do Planejamento, hoje reunidos no Ministério da Economia, definissem que o projeto era “estratégico”.
Um dos argumentos da Assespro é que a definição é vaga e que na prática significa que quem estiver no ministério define o que pode ser dispensado de licitação, permitindo-lhe “legislar” sobre a matéria, o que seria inconstitucional por ferir o princípio de separação dos poderes.
Na semana ada, a ministra Rosa Weber, relatora da decisão, afirmou que o STF já havia definido que “razões econômicas e políticas legitimam restrições à regra geral das licitações”.
Weber observou ainda que os princípios da separação entre os poderes não vedam a delegação de funções normativas a entes istrativos, desde que preestabelecidas, na lei formalizadora da delegação, as diretrizes dessas competências.
A Assespro também havia argumentado em sua Adin que a lei representava intervenção excessiva do estado na atividade econômica, ao que Weber alegou que a Constituição autoriza restrições ao livre exercício de atividade econômica quando necessárias para a preservação de outros direitos e valores constitucionais, como a segurança nacional e a soberania.
A decisão afirma que há “evidente interesse público” a justificar que serviços de TI prestados a órgãos integrantes da estrutura do Ministério da Economia, como as Secretarias do Tesouro Nacional e da Receita Federal, que lidam com informações confidenciais e dados pessoais de contribuintes, sejam prestados com exclusividade por empresa pública federal criada para esse fim, como é o caso do Serpro.
Em nota, a Assespro disse que a decisão é um “grande equívoco” e que “não se pode criar estruturas paralelas para concorrer com o mercado privado”.
“O Serpro, a Dataprev, qualquer outra instituição pública ou gestor público que queira vender para o governo, deve abrir um CNPJ nas mesmas condições daqui do outro lado do balcão. Deve saber o que é pagar impostos e deve entender que não brigamos por barreira de mercado para ninguém, nem contra o desenvolvimento da tecnologia do país”, afirma a nota da Assespro.
A entidade afirma que está “avaliando os próximos os”, mas fica difícil de imaginar quais eles possam ser, judicialmente falando.
Deixando para lá a discussão sobre direito constitucional, o que aconteceu na prática é que o Serpro recebeu do STF o que James Bond chamaria de uma “licença para não licitar”, porque na prática um órgão público interessado em contratar a estatal sem licitação precisa apenas pedir ao Ministério da Economia a liberação para tanto.
Há quase uma década atrás, quando a Assespro entrou no STF contra a Lei 12.249/2010, essas dispensas diziam respeito principalmente a contratos de desenvolvimento de software ou gestão de infraestrutura. Hoje, o que está em jogo com a atuação do Serpro é muito maior.
Isso porque o governo está em meio a uma grande migração para nuvens públicas de multinacionais como AWS, Google, Microsoft e companhia limitada e o Serpro já se posicionou para ser o intermediário na transação.
Em março do ano ado, a estatal fechou um grande acordo com a AWS, ao qual deveriam se seguir outros, o que ainda não aconteceu (provavelmente, é uma negociação dura em cima de margens).
O tamanho potencial do mercado ficou claro em 2019, quando o Ministério do Planejamento organizou a primeira grande licitação para nuvem pública, vencida pela AWS, por meio de uma parceria com a Claro/Embratel.
No formato registro de preços, a licitação resultou em 23 contratações, 10 delas de órgãos que constavam da ata original e mais 13 que aderiram à licitação depois. Como resultado, o pregão de R$ 29,9 milhões já alcançou R$ 55 milhões em contratações de serviço.
Estão previstas migrações para a AWS em órgãos tão diferentes como Ministério da Fazenda, Cade, Polícia Rodoviária Federal, Agência Nacional de Águas, Conselho Nacional de Justiça, INSS e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A atuação como "cloud broker" é só uma pequena parte de uma virada estratégica de grande porte no Serpro.
No final de 2019, a empresa começou a cadastrar fornecedores para desenvolvimento de software em uma ampla gama de tecnologias, preparando o que parece ser um movimento de terceirização.
A estatal listou 34 tópicos nos quais as empresas podem se cadastrar, cada uma com diferentes tecnologias.
A lista vai desde 13 diferentes linguagens de programação até componentes de digital, ando por plataformas de gerenciamento de projetos, frontends, CMS, middleware, testes automatizados e mensageria.
A estimativa é de uma economia de até 50% do "esforço" das equipes internas do Serpro, percentual que costuma ser utilizado nos “processos de codificação”.
Com a medida, combinada com programas de demissão e menos contratações, o Serpro vai se tornar uma empresa mais competitiva, ao reduzir o custo da mão de obra de funcionários públicos para terceirizados em empresas privadas.
Como o próprio presidente do Serpro já disse, a estratégia é criar uma empresa mais enxuta, aumentando muito o seu número de clientes no mercado privado e multiplicando seu faturamento como um o prévio para uma abertura de capital na bolsa de valores.
A privatização do Serpro segue andando nos bastidores. Em setembro, o BNDES fechou um contrato de R$ 7,93 milhões com um time de consultorias encabeçadas pela Accenture visando fazer a modelagem do processo de privatização do Serpro e da Dataprev.
Por outro lado, a ala privatista do governo, liderada pelo ministro Paulo Guedes, perde influência a olhos vistos à tempo, a pauta nacional está dominada pelo coronavírus e por uma possível crise política com um processo de impeachment.
Ao final, pode se dar a curiosa situação de que um governo eleito com a pauta de reduzir a presença do estado da economia entregue um Serpro mais poderoso e presente do que nunca, fazendo uso do arcabouço legal herdado do governo Lula. O Brasil não é para amadores, etc.