ANÁLISE

Big Tech quer dominar o dinheiro com Libra 255z20

Bitcoin queria substituir política por algoritmo. Agora o plano é bem outro. Uma análise em profundidade. 3g5y3l

16 de julho de 2019 - 13:07
Iniciativa liderada pelo Facebook pode mudar todo o sistema financeiro. Foto: Pexels.

Iniciativa liderada pelo Facebook pode mudar todo o sistema financeiro. Foto: Pexels.

As autoridades monetárias do mundo inteiro pararam nesta terça-feira, 16, para assistir a representantes do consórcio liderado pelo Facebook se apresentarão diante da comissão de finanças do senado dos Estados Unidos e explicar o que pretendem fazer com a Libra, sua moeda digital.

Não é para menos. A soberania dos estados nacionais está em jogo. Se o projeto do Facebook vingar, poderemos assistir a um rearranjo institucional inédito na história do mundo. Mesmo se der errado, a semente estará plantada. 

A essas alturas, você já deve lido alguma coisa sobre a libra, anunciada há coisa de um mês, se tanto. A moeda foi batizada em referência à unidade de medida usada pelos romanos que, em línguas latinas, se confunde com o pound inglês. 

Não vou entrar nos detalhes tecnológicos da moeda virtual porque pouco foi divulgado até o momento.  Sabemos apenas que a libra foi desenhada para ser uma criptomoeda, tal como o Bitcoin. Mas as semelhanças terminam por aí. Se o primeiro é utopia, a segunda é a própria distopia.

Estudantes de economia aprendem cedo as três funções da moeda. Para quem não sabe, as funções são 1) unidade de conta; 2) meio de pagamento e 3) reserva de valor. 

Já no meio do curso, o aluno começa a entender que além das três funções exatas da moeda, existem outras menos visíveis mas muito presentes. A moeda é um signo, um sinal. Para funcionar, uma moeda depende de aceitação e credibilidade. Isso é o básico.  

O Bitcoin nasceu ingênuo, como toda boa ideia. Na raiz da idealização, está um sistema de pagamentos digital, descentralizado, anônimo e sem regulação. Ou, melhor dizendo, regulado por um algoritmo. 

Em contraste, as moedas como as conhecemos hoje são reguladas de perto pelos bancos centrais, cujos representantes da sociedade - onde há democracia - decidem as políticas monetárias nos domínios de seus territórios. 

Acontece que a democracia não é perfeita e os estados, não raro, são pilotados por estratos pouco representativos da sociedade. Logo, nem sempre com interesses convergentes com o do interesse geral. 

Foi essa imperfeição que levou os nerds a quererem sabotar o sistema com criptomoedas. Eles queriam dar um basta a dominação de poucos sobre muitos, colocando um algoritmo no lugar da política. 

Não deu certo até agora, o Bitcoin continua operando nos subterrâneos do sistema. Quando emerge, vemos apenas a sua face especulativa. A volatilidade do qual foi vítima não permitiu que o Bitcoin se tornasse um signo digno de credibilidade e aceitação.   

A LIBRA É MUITO DIFENTE DO BITCOIN

A libra, porém, nasce esperta como o diabo. Se esse bebê, cuja gestação começou 18 meses atrás, efetivamente vier à luz em 2020, se tornará da noite para o dia uma das moedas de maior circulação no mundo. Os 2,4 bilhões de usuários do Facebook serão a sociedade regida sob o signo da Libra. 

A nova moeda será controlada por um consórcio chamado Libera Association formado por 28 entidades, encabeçadas por big tech firms, com sede em Genebra, na Suíça. Isso significa que nem a política nem um algoritmo, mas capitalistas do século XXI serão os reguladores desta criação. 

Ao contrário do Bitcoin e outras criptomoedas, a libra vai ter lastro em uma cesta de outras moedas e ativos com liquidez. Assim, seu valor será estável e dificilmente será usada para fins especulativos. 

O sistema da libra será aberto, de forma que qualquer empresa poderá oferecer serviços financeiros em libras. 

O Facebook vai oferecer a sua própria carteira digital, a Calibra, com enorme vantagens sobre os concorrentes, já detém informações preciosas sobre hábitos de consumo, geolocalização, círculos de amizade e tudo o mais que se pode extrair de dados de seus usuários. 

O Facebook poderá (caso se torne um banco) tirar proveito disso para oferecer empréstimos com juros customizadíssimos. Cada usuário terá seu credit rating atualizado em tempo real, mais ou menos como a personagem Lacie daquele famoso episódio do Black Mirror (Netflix). 

Informações divulgadas, no entanto, dão conta de que as transações serão protegidas pelo anonimato - seja qual seja o conceito de anonimato hoje em dia dentro do Facebook.

QUAIS SÃO OS IMPACTOS?

Não há dúvidas de que a libra é sedutora. O impacto imediato será a drástica redução dos custos de transação internacional. 

Pode ser ótimo para o comércio e para o consumidor, mas péssimo para agentes financeiros que ganham muito dinheiro intermediando o envio de dinheiro de um país para outro.  

Western Union e TransferWise podem estar com os dias contados, ou ar a utilizar a Libra criando sua própria carteira digital e suite de serviços - ainda assim será difícil não lembrar dos dias de glória e altas margens de lucro do ado. 

A disrupção deverá atingir também o comércio nacional. Hoje, um pequeno grupo financeiro fica com aproximadamente 0,25% de tudo o que é transacionado nos EUA, um mercado de US$ 30 bi por ano. 

Com a libra, esse mercado tende a evaporar.  Muitas pessoas podem deixar de usar ou reduzir suas compras no cartão de crédito, levando as tradicionais bandeiras a terem dores de cabeça. 

Talvez as force a reduzir tarifas e oferecer mais mimos e milhagens do que hoje. Visa e Mastercard, entretanto, fazem parte do consórcio gestor da libra. 

Se cada um dos 2,4 bi de usuários do Facebook colocarem 10% de sua receita em Libras, o total chega facilmente a US$ 2 trilhões, tornando o consórcio controlador da libra um dos grandes players do mercado financeiro. 

O potencial fluxo de enormes somas de depósitos bancários para contas em libras pode deixar bancos em apuros. Há o real risco de bancos quebrarem nesta jogada. 

Países podem ver enormes somas de dinheiro fluindo de dentro para fora, levando à desvalorização de moeda local e instabilidade cambial, além da perda de controle soberano sobre o fluxo de capital, causando déficits no balanço de pagamentos. 

O Brasil já sofreu muito com isso até o final dos anos 90, até conseguir criar um grande fundo de reservas internacionais que em 2019 acumula mais de US$ 380 bi. Não é o caso da Argentina, que ainda sofre severamente com choques cambiais. 

Para o Facebook, os ganhos podem vir de algumas formas. Com as informações extras e muito precisas sobre os hábitos de consumo dos usuários, o targeting de ads será mais preciso, logo poderá ser cobrado mais dos anunciantes. 

Muitos usuários, no entanto, poderão duvidar da capacidade do Facebook guardar bem o seu dinheiro tanto quanto guarda suas informações. A empresa declarou que não vai compartilhar as informações dos usuários, exceto em "casos s". Já sabemos que casos s podem rapidamente virar regra. 

UM WE CHAT PARA O OCIDENTE?

A motivação para a criação da moeda, no entanto, permanece incógnita. Oficialmente, o Facebook disse que quer apenas um mundo melhor onde pessoas no mundo todo poderão comprar e vender livremente, ter o ao sistema financeiro e serem mais felizes através do consumo. 

Mas a resposta séria evidentemente não é essa. A Libra pode ser o resultado de um esforço para fazer frente ao WeChat, aplicativo onipresente e possivelmente onisciente muito usado na China.  

A guerra comercial entre EUA e China e suas implicações nos países sob esfera de influência está proporcionando um tempo extra para o Facebook e a Libra ficarem alcançar o mesmo nível de adoção do WeChat, só que do lado ocidental do globo. 

Apesar de o Facebook afirmar que não pretende ser um banco, mas apenas um operador, a tentação de se tornar banco pode ser grande. Na prática, todo banco tem a capacidade e o poder de criar dinheiro. Não moeda, mas dinheiro. 

Qualquer banco cria dinheiro ao criar um registro de débito/crédito. A libra, tal como está sendo divulgada é uma moeda, um meio de pagamento, mas não deve ser confundido com o dinheiro. A moeda está para o corpo assim como o dinheiro está para a alma. 

Na primeira fase do capitalismo, quem dava as cartas eram os comerciantes. Na fase seguinte, os industriais, junto com os grandes bancos. No século XXI, os grandes acumuladores de capital são as empresas de tecnologia. 

Mas quem domina os estados nacionais ainda não são eles. Os donos do poder do século XX ainda estão grudados aos estados nacionais e os tech giants parecem não estarem inclinados a disputar ombro a ombro com esses caras. 

Se antes o estado era visto como um mal necessário, para os nerds o estado é algo a ser sobreado. Ainda mais neste momento em que as instituições políticas estão sendo corroídas de dentro para fora por forças reacionárias e populistas, transformando o terreno político, que já era pantanoso, em algo ainda mais inóspito para aventureiros de primeira viagem. 

A opção que sobrou para a turma do Vale do Silício foi criar sua própria instituição extra-estatal, tornando os estados nacionais menos relevantes, além de um obstáculo a menos. 

Mas um fundo formado por empresas privadas, sem participação de representantes da sociedade, dificilmente terá a sabedoria necessária para tomar decisões que promovam uma vida digna ao seu povo. 

Será que os estados nacionais permitirão que um consócio privado ganhe corpo e proporções leviatânicas a ponto de suplantar a eles próprios? 

Este é o jogo que está sendo jogado. Convém ficar atento. O Facebook e seus parceiros podem estar acertando uma tacada e tanto, levando a sociedade para uma etapa até então desconhecida. 

Mas do outro lado do campo está um adversário bruto, acostumado com a guerra. Os estados sabem se defender, ainda mais quando o que está em jogo é o poder de se criar poder pelo controle do dinheiro. 

Bancos tradicionais como JP Morgan também estão estudando o lançamento de sua próprias moedas. Um banco que sobreviveu à Grande Depressão talvez tenha alguma vantagem. Talvez o Facebook e amigos não façam a menor ideia de onde estão se metendo. 

* Colaborou com esse artigo a professora Gláucia Campregher da Economia da UFRGS.

* Carlos Martins gosta de pensar sobre dinheiro. Ele também é dealizador da E-24, a primeira corrida de carros 100% elétrica do Brasil.

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