
O presidente da GM, Carlos Zarlenga, e o governador de São Paulo, João Doria, selam a permanência da GM. Foto: Governo do Estado de São Paulo.
A ameaça de deixar o país deu resultado para a GM, que acaba de obter um plano sob medida para as suas necessidades do governo paulista, em um movimento com cheiro de guerra fiscal que mesmo assim pode não ser suficiente no longo prazo.
Nesta terça-feira, 19, a GM anunciou no Palácio dos Bandeirantes um plano de investimento de R$ 10 bilhões nas duas fábricas localizadas no estado de São Paulo no período de 2020 a 2024.
O valor é sob medida para entrar ao programa IncentivAuto, lançado no início de março pelo governador João Dória e pelo secretário e ex-ministro da fazenda Henrique Meirelles.
O IncentivAuto funciona com base em descontos progressivos de ICMS que vão de 2,27% até 25%. O investimento mínimo exigido é de R$ 1 bilhão, que pode ser em novas fábricas, novos produtos, novas unidades de produção ou expansão.
Para obter o desconto máximo, as montadoras devem investir pelo menos R$ 10 bilhões, justamente o montante que o presidente da GM, Carlos Zarlenga, anunciou nesta semana.
A GM fala em investir em novos produtos, novas tecnologias e conectividade, sem maiores detalhes. Sabe-se apenas que 400 novos postos de trabalho deverão ser gerados, o que, de novo é o mínimo exigido pelo programa.
Dória foi informado, logo após sua vitória no segundo turno, sobre a decisão da GM de fechar fábricas no seu estado.
Ele então teria pedido 60 dias para negociar, ainda que a montadora não houvesse exigido nada naquele momento, segundo declarou à imprensa durante a coletiva.
Neste período, a GM começou um movimento que colocou pressão nos trabalhadores, fornecedores e governantes.
Ainda em janeiro deste ano, um bilhete fora colocado nos murais de avisos das cinco fábricas avisando que um plano de reestruturação estava em curso, já que a região vem apresentando prejuízos, segundo os relatórios da matriz norte-americana.
A CEO global da GM teria declarado na ocasião da divulgação dos resultados financeiros que o grupo não investirá em locais que drenam recursos ao invés de dar lucro. A indireta foi recebida na América do Sul com sobressalto.
Cabe salientar que a Chevrolet é campeã de vendas no país e que o alegado prejuízo tem como principal causa o câmbio desfavorável, conforme consta no relatório do último trimestre.
Ou seja, a operação é saudável na região, mas não tem abastecido o cofre da matriz depois da conversão de reais para dólares.
A pressão que o bilhete e os recados que a GM fez questão de circular pelos meios especializados parece ter compensado.
Como resultado, a montadora obteve um programa redigido sob medida pelo governador paulista, reduções de benefícios para os trabalhadores, salários menores para novos empregados, congelamento ou até redução de preços pelos fornecedores de autopeças e redução da comissão de vendas pelas concessionárias.
Ao que tudo indica, o movimento iniciado pela GM poderá ser seguido por outras montadoras, que certamente tomarão nota do fato de que o apregoado liberalismo econômico de figuras como Doria e Meirelles não é do tipo que aguenta a saída de grandes empresas.
A indústria automotiva é um dos motores de São Paulo, empregando 57 mil pessoas em montadoras de automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus.
Isso representa 51% do total no país de acordo com dados Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). O estado tem fábricas da Caoa-Chery, Ford, General Motors, Honda, Hyundai, Mercedes-Benz, Scania, Toyota e Volkswagen.
Apesar de Dória negar que tenha dado início a uma guerra fiscal com outros estados, fontes ouvidas pela reportagem do Baguete confirmam o mal estar do governo gaúcho em relação à cartada paulista. A GM tem uma fábrica no estado, em Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre.
No primeiro mês do mandato, o governador Eduardo Leite se ocupou em negociar com a Assembléia Legislativa prorrogação do aumento da alíquota de ICMS no Estado.
Fica claro, portanto, que o quadro de crise fiscal deixa pouca ou nenhuma margem para o novato governador negociar descontos para atrair ou reter grandes empresas no estado.
Zarlenga, em tom de desabafo, disse que as fábricas da GM no país “são tão ou até mais eficientes que boa parte do mundo”, sendo o problema a “falta de eficiência fiscal”.
“Quase 50% de nossas receitas são pagos em impostos. Os governos sabem disso e que precisam fazer algo para tornar o País competitivo globalmente”, disse o presidente da GM no Brasil.
De fato, a participação total de impostos no preço do carro ao consumidor é de 30,4% no Brasil, enquanto na Alemanha o total chega a 16% e nos Estados Unidos pode ser tão baixo quanto 6,8% em alguns estados.
Acontece que no Brasil este problema não restringe aos veículos, mas todos os produtos e serviços comercializados.
O país tem um sistema tributário regressivo, onde o peso dos impostos recai muito em cima de bens e serviços e pouco em cima da renda. Este é o problema estrutural que deve ser enfrentado na esperada reforma tributária, que até hoje nenhum governo teve força e vontade de realizar.
Alguns analistas chegaram a cogitar que a ameaça da GM de deixar o país fora um blefe para forçar a situação na qual chegaram agora, com benesses que incluem, fora o que já foi citado, isenção total de IPTU, desconto na conta água e esgoto, além de redução do ISS pela prefeitura de São Caetano do Sul. Mas há de se avaliar a situação um pouco mais a fundo.
No tabuleiro global do mercado automotivo, existe uma corrida para atender às tendências da nova mobilidade. O consumidor vai demandar carros cada vez mais conectados, elétricos e autônomos. Ou seja, a disrupção está batendo à porta e montadoras tradicionais e bem estabelecidas estão enfrentando essa mudança.
Algumas já saíram na frente, como é o caso da japonesa Nissan, que tem o elétrico mais vendido do mundo, o modelo Leaf, que chega ao Brasil ainda neste ano.
As sas Renault e Peugeot também já têm seus modelos rodando há uns cinco anos, pelo menos. Os alemães não querem ficar para trás e vêm investindo forte na eletrificação de frota, com destaque para a Volkswagen, que tem planos ambiciosos para sua plataforma MEB.
Porsche e Audi, que fazem parte do grupo VW, acompanham o movimento, bem como a Mercedez-Benz. Na China, uma porção de montadoras pouco conhecidas por aqui estão vendendo carros elétricos como pãozinho na feira. De fato, o mercado chinês já é o maior do mundo para esse tipo de veículo.
Nos Estados Unidos, a Tesla reina sozinha, por enquanto. A pioneira do carro elétrico e conectado desfruta de uma demanda que ela mal da conta de atender e do prestígio de ter os carros mais tecnologicamente avançados da atualidade.
Suas conterrâneas, no entanto, demoraram a responder a essa concorrência subestimada. Com certo atraso, a GM divulgou que vai pular a etapa dos híbridos para se concentrar no desenvolvimento dos puramente elétricos a partir deste ano.
Essa mudança visa a sobrevivência da marca diante do cenário da nova mobilidade. Mas não vem sem custo. Pesados investimentos deverão ser feitos sem qualquer garantia de resultados.
Se a GM não for capaz de projetar uma linha de veículos que possa competir com Tesla, Volkswagen e os asiáticos, será o fim para a montadora centenária. A reestruturação já começou e prevê a demissão de milhares de trabalhadores e fechamento de fábricas.
Não devemos esquecer que a GM por muito pouco não foi à bancarrota durante a Crise Financeira Global de 2008. Foi salva do bailout pelo governo norte-americano.
No momento em que finalmente vem colhendo bons resultados ao focar-se no seu core business, enfrenta essa mudança de cenário que pode selar seu destino.
Para um grupo gigante como a GM, fechar fábricas ou vender operações é algo que se tornou trivial. Basta lembrar que as marcas Vauxhaul e Opel foram vendidas para o grupo francês PSA Peugeot Citroën há dois anos. Em novembro ado, anunciou que neste ano serão fechadas cinco fábricas na América do Norte.
Já a Ford do Brasil não quis saber de brincadeira: divulgou o fechamento da fábrica de caminhões e nem se deu ao trabalho de negociar. Decisão tomada.
O risco de fechamento de fábricas da GM no Brasil é, portanto, potencialmente real.
Tradição não ganha jogo. A questão que fica no ar, e responda quem tiver vontade, é até que ponto os governos devem intervir para impedir que a mão do mercado se encarregue de premiar os eficientes e condenar os derrotados à bancarrota.
* Carlos Martins é idealizador da E-24, a primeira corrida de carros 100% elétrica do Brasil e escreve para o Baguete sobre temas relacionados com indústria automobilística e mobilidade. Confira o blog da E-24.